Martin Scorsese enquadra os olhos de Travis Bickle no retrovisor dianteiro do táxi, um olhar soturno que cintila ódio e ressentimento por quase todos que cruzam o seu caminho, assim Travis tenta encontrar meios de causar uma ferida, naqueles que ele despreza. Como passageiros, nós espectadores, observamos pela janela uma Nova York sem nenhum glamour, decadente, repleta de sujeira, representando a degradação dos homens. Enquanto isso, ouvimos o jazz sofisticado de Bernard Herrmann (compositor dos filmes de Alfred Hitchcock), que vai sendo substituído por uma percussão sombria que soa puro estado crescente de tensão. Através da fotografia de Michael Chapman, luzes de tonalidade saturada são usadas pelos faróis e letreiros das lojas, transmitindo as emoções instáveis da mente de Travis e iluminando a noite ameaçadora e o submundo criminoso da selva urbana.
Em extraordinária atuação, Robert De Niro interpreta Travis Bickle, um veterano da Guerra do Vietnã de vinte e seis anos, atormentado pelas suas experiências passadas, lutando contra o tédio e sofrendo de insônia crônica, resolve então sobreviver em Nova York como taxista noturno. A trajetória de Travis é narrada sob a perspectiva de sua instabilidade psicológica, onde o seu maior desafio é se confrontar consigo mesmo.
Dirigindo pelas ruas, Travis se sente incomodado pela vadiagem e prostituição, nomeadas por ele como a escória, só lhe restava então esperar por um dilúvio para limpar e purificar toda a perversão e a corrupção da megalópole, escorrendo a podridão de volta para os bueiros do esgoto. Esse desejo exterminador vem da sua inquietude de presenciar nas noites a libertinagem sexual do movimento hippie e a recessão econômica pós-governo Nixon, o oposto ao sonho americano.
À noite os animais saem da toca. Prostitutas fedorentas, vigaristas, bichas, viciados, traficantes. Imorais, corruptos (…) Levo gente para todos os bairros. Até para o Harlem. Não importa. Não faz diferença pra mim. Há os que recusam passageiros negros. Eu não me importo.
Travis
A explosão do inconformismo raivoso: foi para isso que lutei na guerra? Mergulhado em amargura, bebendo da fonte da insanidade e megalomania, atuando como Travis Bickle, Robert De Niro improvisa e faz a cena épica onde encara o abismo de sua existência, conversa consigo mesmo em frente ao espelho, puxa um revólver e pergunta-se: “You talking to me?” (tá falando comigo?). Curiosamente, essa cena foi refeita por Vincent Cassel no filme “La Haine” (O ódio), de Mathieu Kassovitz.
Para passar o tempo, Travis permanece quase hipnotizado observando as mazelas produzidas pela televisão, frequenta cinemas imundos de filmes pornográficos, dirige sem rumo pela periferia de Manhattan, escreve cartas aos pais e o mais interessante, expõe toda sua angústia existencial em seu diário, por lá seus dias são descritos através do filtro distorcido da paranóia, e mesmo com sua saúde mental em declínio, ele busca evitar o descolamento total da realidade, se mantendo num trabalho enfadonho e tentando se relacionar com pessoas.
Doze horas de trabalho e não consigo dormir. Droga. Os dias vão passando. Não acabam nunca. Só quero saber que caminho seguir. Ninguém deve viver nesse isolamento mórbido. Tenho que ser como todo mundo.
Travis
Martin Scorsese & Robert De Niro
Clássico do cinema, Taxi Driver (1976) foi o primeiro filme de Martin Scorsese que trouxe reconhecimento ao diretor, tornando sua obra-prima, o filme revela-se um retrato violento dos efeitos da solidão e a instabilidade psicológica de um ex-combatente de guerra. Desajustado em sua nova rotina, com comportamento antissocial e dono de uma mente paranóica, Travis busca realizar um ato heróico para escapar da sua frágil existência que nada combina com o seu ideal do ego (a imagem do modo como gostaria de ser), assumindo o papel de um anjo vingador (como o próprio Scorsese o define).
O germe de uma ideia está crescendo em mim. Força total. O que for destruído não será reparado.
Travis
Você acredita que Martin Scorsese teve dificuldade para encontrar alguém que produzisse esse marco do cinema? Por que uma obra cinematográfica tão impactante, não ganhou nenhum Oscar? Pois é a época era outra… Taxi Driver era ousadia pura, ia na contramão do padrão hollywoodiano e da censura ainda vigente (o código Hays) que até então proibia a produção de obras que pudessem ferir os princípios morais do espectador ou conduzir a um processo de identificação com o crime, o mal ou o pecado. A estética do filme de Scorsese era de violência ao terror psicológico e quem iria se arriscar nesse investimento? O protagonista seria um anti-herói. Escolhido, Robert De Niro não pensou duas vezes quando leu o roteiro, ficou super empolgado, trabalhou de verdade como taxista em Nova York por três meses e pesquisou sobre transtornos mentais para incorporar o personagem.
Toda noite eu devolvo o táxi para a garagem, tenho que limpar o sêmen do banco de trás. Algumas noites, eu limpo sangue.
Travis
Taxi Driver é um reflexo realista dos Estados Unidos pós-Vietnã, mostrando uma sociedade em ruínas, carregada de sujeitos confusos, solitários e cheios de problemas que ainda não seriam resolvidos no período cruel da década de 70. O sonho americano pelo qual Travis Bickle lutou na Guerra do Vietnã, foi esmagado. O fim da guerra, onde bilhões de dólares foram investidos, culminou numa crise econômica aguda e inúmeros desempregados. O tráfico de drogas ganhou as grandes cidades, o que aumentou a criminalidade e violência. A moral do cidadão norte-americano estava em baixa como a de Travis, dono de uma personalidade paranoide, num estado de profunda melancolia, nutrindo um sentimento de desconexão social, o final será sangrento.
Deixa-me em paz, estou morto.
Travis
O roteiro, escrito por Paul Schrader, é denso e envolvente, descreve uma sociedade à qual Travis Bickle sente repulsa, não quer pertencer e não está disposto a negociar com nada, a guerra está declarada. Quase inteiramente autobiográfico, Paul Schrader somente em dez dias, depositou no personagem Travis suas experiências pessoais, nas páginas em branco acabou descrevendo sua situação atual, desempregado, abandonado pela namorada que o fez divorciar de sua primeira mulher e à beira de um colapso nervoso, não satisfeito, o roterista também acrescentou o atentado real de maio de 1972, no qual o patriota Arthur Bremer atirou no candidato presidencial George Wallace, falhando em sua tentativa de homicídio.
Tendo acesso aos diários de Arthur Bremer, o patriota sociopata serviu de inspiração para Taxi Driver, as anotações de um indivíduo avulso, posto à margem da sociedade, permitiram à Paul Schrader debruçar-se sobre a alma do ser humano e, mais importante, sobre si mesmo. Outro aspecto importante visto no personagem principal é a representação do esquecimento dos soldados estadunidenses que lutaram na Guerra do Vietnã, como eles foram reinseridos na sociedade sem nenhum auxílio econômico e muito menos sem qualquer tipo de acompanhamento psicológico. Taxi Driver é uma reflexão existencial sobre as próprias angústias e solidão do roterista e também uma jornada psicológica assustadora de um homem mórbido e revoltado, numa sociedade indiferente ao sofrimento alheio.
Merda. Estou esperando o sol brilhar.
Travis
Junto à multidão da cidade, o sentimento de solidão não deixa de estar presente e em meio ao vazio da vida afetiva surge a imagem angelical de Betsy (Cybill Shepherd) que acaba por revelar a falta de habilidade social de Travis, o romance rende apenas dois encontros e termina de forma abrupta. Betsy trabalha na campanha de Charles Palentine, um senador que está se candidatando a presidente e promete mudanças sociais drásticas, na tentativa de encantar a moça, Travis entrou no comitê eleitoral do político, mas essa aproximação também foi desastrosa. Rejeitado, passa a enxergar Betsy de outra forma.
Agora eu percebo como ela é como os outros… fria e distante. Muitos são.
Travis
Travis parece cada vez mais deslocado da realidade que o cerca, pois está muito centrado na própria visão de si mesmo e não consegue perceber seus desvios morais, além da caótica compreensão das normas de socialização, isso fica nítido no primeiro encontro com Betsy, quando ele a convida para o cinema (pornô) que frequentava, e não entende a raiva dela ao descobrir o tipo de filme que está sendo exibido.
A solidão me perseguiu a vida toda. Em bares, carros, calçadas, lojas, em todo lugar. Não há escapatória. Eu sou o homem solitário de Deus.
Travis
Afundando na lama, o pedido de socorro implícito surge numa conversa entre Travis e o taxista Wizard, confessando que tem más ideias em mente, está inquieto para fazer alguma coisa, talvez esse diálogo pudesse mudar o desfecho da história, entretanto o colega não tem habilidade para perceber a gravidade da situação que está por vir e não ajuda em nada.
Não sou Bertrand Russell, mas o que você quer de mim? Sou motorista de táxi… nem sei do que você está falando!
Wizard.
Por mais que se ache superior, diferente de todos, Travis também é uma “máquina desejante”, aliás o desejo nos move para frente, por isso mesmo que não ter seus desejos satisfeitos gera nele uma frustração tamanha que não sabe como lidar. Mas isso parece mudar com o surgimento de Iris, a imagem de alguém com tão pouca idade e já sem perspectiva de futuro como o ex-combatente.
Numa determinada noite, entra em seu taxi uma garota de programa de apenas 12 anos chamada Iris (Jodie Foster), que se desentende com o seu cafetão, Sport (Harvey Keitel). A partir desse evento, Travis desenvolve uma obsessão pela garota, decide se tornar uma figura heróica e tirá-la da prostituição.
Uma mente desajustada, angustiada com a falta de sentido na vida, desperta no taxista o desejo de morrer por uma causa, um ato memorável que traga o reconhecimento do qual não conquistou após servir na guerra. Ocorre uma mudança em sua imagem, decidido, ele raspa o cabelo e deixa apenas um moicano, como faziam os integrantes das forças especiais na Guerra do Vietnã para entrar modo “assassino”. Para começar, Travis tenta matar o senador Palentine, um político como tantos, hipócrita e desatento aos problemas sociais, mas o plano falha, com sede de vingança, agora ele quer atacar os cafetões de Iris. Podemos observar que, Betsy e Iris, ambas imagens femininas funcionaram como objeto de obsessão e quebra de rotina.
A mente de Travis Bickle é dominada por pensamentos intrusivos acerca da sociedade corrompida que o envolve, sua realidade parece um pesadelo, um lugar hostil e imoral, habitado por criaturas que não valorizam o valor de um veterano de guerra, um herói que luta por sua pátria. Isso ocasiona uma crescente agitação interna no personagem que determinará o comportamento antisocial, convertendo-se num justiceiro.
Ouça, cambada de sacanas. Comigo vocês não podem. Desafio os imundos, as porcas, os cachorros, os canalhas. Sou um revoltado.
Travis
Abraçando sua paranoia raivosa, em nenhum instante, Martin Scorsese permite que nos afastemos do ponto de vista do enigmático protagonista, cujas divagações denunciam a natureza circular da existência sem sentido de uma mente perturbada, Travis é um indivíduo imerso num inferno e movido por uma autoanálise incessante.
Nos grandes centros urbanos, como Nova York, por mais que haja uma concentração de pessoas aglomeradas, elas se encontram solitárias, submetidas a rotinas desgastantes, estão sempre com pressa, aflitas, resolvendo os seus problemas, evitando novos problemas e lutando contra os seus próprios demônios e se sentem quase que invisíveis atormentados pelo medo e pela falta de sentido na vida que seguem.
Estou cheio da vida que levo.
Travis
Travis Bickle estava determinado a agir, para o bem ou para o mal, cansou da monotonia. Em época de depressão nos EUA, Robert De Niro conseguiu retratar as características de um sujeito que se vê excluído, tão encolhido na sua solidão que sente que não tem mais nada a perder, pois colocou sua vida em risco no passado, lutou por um país que nem o enxerga, uma luta em vão, resolve logo se vingar por motivos políticos, alguém com sede de fazer justiça com as próprias mãos, a que ponto pode chegar?
Só agora percebo o verdadeiro objetivo de minha vida. Agora sei qual é. E dele não posso fugir.
Travis
Equipado com todos os tipos de armas, Travis promoverá uma espécie de limpeza social autossuficiente, o final apoteótico é o trágico massacre, que por fim traz alguma paz ao protagonista. Com uma fotografia pesada, quase nauseante, Travis Bickle atira contra os homens que exploravam Iris, quando a polícia chega, ele tenta suicidar-se com um tiro na cabeça, mas fica sem munição e desmaia devido à perda de sangue. O resultado é uma explosão de violência que se tornou a marca do cinema norte-americano, a câmera aérea vasculha o ambiente como uma anatomia do crime. Travis acaba sendo aclamado pela polícia e imprensa como um herói e não responde criminalmente, ele também recebe uma carta do pai de Iris, agradecendo por salvá-la da prostituição e dizendo que a adolescente voltou para casa e está estudando.
Explicação do Final
Após todo o tumulto, Travis cai em esquecimento de novo e aparece como antes, solitário em Nova York, o muro de incomunicabilidade entre a sua personalidade e o mundo exterior retorna ao lugar, de volta ao ponto de partida, sem rumo, o taxista noturno fica subitamente agitado depois de notar algo no espelho do retrovisor, na verdade não havia nada ali além de si mesmo, sua paranoia continua presente, acompanhando a cada olhar um pensamento conspiratório.
Considerado pela crítica como um dos melhores filmes de todos os tempos, “cultural, histórico e esteticamente significante” pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, Taxi Driver foi selecionado para ser preservado no National Film Registry em 1994 e ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1976 como melhor filme e teve 4 indicações ao Oscar, mas não levou nenhuma estatueta, por essa e outras que continuo não valorizando essa premiação.
Travis Bickle: You talking to me? / Tá falando comigo?
AFINAL, QUAL O DIAGNÓSTICO MAIS APROPRIADO AO PROTAGONISTA?
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE PARANOIDE.
O transtorno de personalidade paranoide é mais comum em homens. Na infância e adolescência, apresentam ansiedade social, baixa sociabilidade e rendimento escolar sofrível. Pessimistas, enxergam somente o lado negativo das coisas.
Portadores de personalidade paranoide são extremamente observadores e desconfiados, suspeitam de todos, por trás de cada ação dos outros há uma má intenção, assim gostam de se vangloriar por lerem nas entrelinhas e captarem significados ocultos em cada gesto e fala dos demais, embora na maioria das vezes isso não se confirme. O paranoide nunca percebe que pode estar errado, os outros que não conseguem entender sua maneira de ver as coisas.
Para eles, o mundo é dividido entre os representantes do bem e do mal. Como há sempre um inimigo pronto para prejudicá-los, ficam atentos constantemente para não serem explorados, enganados e maltratados e reagem com uma postura defensiva. Adoram estudar sobre conflitos bélicos, estratégias de batalha e colecionar armas de fogo. Os filmes, livros e jogos escolhidos também abordam a mesma temática, guerra.
Geralmente, sujeitos com traços paranoides parecem isolados e distantes, evitam estranhos e não gostam de fazer amizades, eles não aceitam brincadeiras, levam tudo para o lado pessoal e se sentem humilhados. Quando um suspeito vira inimigo, podem ser vingativos. Afastando de si toda a maldade, projetam sua raiva e hostilidade em figuras externas, o que também os leva ao fanatismo, facilmente aderem a seitas religiosas, nas quais encontrem pessoas com quem possam compartilhar suas crenças paranoides e alimentar uma visão de mundo apocalíptica.
E aí, gostou da análise psicológica? Se você já assistiu a Taxi Driver e quer deixar sua opinião ou alguma dica de filme da famosa dupla Scorsese e Robert De Niro, deixe seu comentário aqui embaixo ;)
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NY é o que o filme apresenta; e cheira a urina ou maconha.
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Impressionante como o filme ainda é atual, como a sociedade degradada ainda permanece não só em Nova York como em outros grandes centros Trevis ainda se encontra nas ruas. Adorei o filme que você analisou tão bem.
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Sim, apesar de antigo, o contexto do filme parece bem atual, infelizmente, a crise econômica agora é mundial, e devem existir muitos Travis revoltados circulando por aí. Obrigada por apoiar meu trabalho! 😊
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