Nova Inglaterra, década de 1630. O casal William e Katherine leva uma vida cristã com suas cinco crianças em uma comunidade extremamente religiosa, até serem expulsos do local por sua fé diferente daquela permitida pelas autoridades. A família passa a morar num local isolado, à beira do bosque, sofrendo com a escassez de comida. Um dia, o bebê recém-nascido desaparece. Teria sido devorado por um lobo? Sequestrado por uma bruxa? Enquanto buscam respostas à pergunta, cada membro da família enfrenta seus piores medos e seu lado mais condenável.
O longa A Bruxa é baseado em contos folclóricos da Nova Inglaterra, século XVII. A história tem como trama principal o jogo da perversidade entre o poder demoníaco e a figura da bruxa. Logo nos minutos iniciais, presenciamos uma família sendo julgada, expulsa de sua comunidade. O patriarca, William fala de castigo divino e do peso das mãos de Deus sobre os aldeões, mas o verdadeiro motivo da expulsão não é explorado no filme. Num terreno remoto e isolado, a nova morada da família é próxima de uma floresta onde estabelecem um casebre humilde e começam a fazer plantações e criar animais num pequeno rebanho. A impressão é que algo de muito cabuloso está para invadir a qualquer momento o casebre da família. Coisas estranhas começam a acontecer.
A família é formada pelo patriarca William (Ralph Ineson), a esposa Katherine (Kate Dickie) e seus cinco filhos: a adolescente Thomasin (Anya Taylor-Joy), o pré-adolescente Caleb (Harvey Scrimshaw), os gêmeos e o recém-nascido. O pai é a força bruta, mas também o olhar caridoso. A mãe é pura tensão, culpa e acusações. Thomasin tenta manter a sanidade em meio ao caos. Caleb luta para mostrar maturidade ao pai. Os gêmeos parecem tão angelicais quanto diabólicos. O bebê tem pouco a nos dizer e ainda some sem deixar rastros.
O acesso à bela, imensa e misteriosa floresta é proibido pelos pais, os filhos temem chegar perto, dando a ideia de inferno. Com a ameaça invisível que vem da floresta, como disse há algo de sinistro e sobrenatural, por ser desconhecido aos poucos se estabelece um clima de terror, paranoia e desconfiança em cada personagem. O isolamento e a fome devido ao fracasso da colheita, provocam grande desgaste e efeitos psicológicos. O ambiente é de hostilidade e tudo piora quando o bebê desaparece misteriosamente sob os cuidados de Thomasin.
Bode Expiatório
Alguém precisa ser o responsável pela má sorte. Se não é Deus, com certeza será algum dos personagens. Thomasin é injustiçada, após a tragédia todos suspeitam que ela é a bruxa que assombra a floresta. Por estar entrando na puberdade, a garota se torna um fator de desequilíbrio na dinâmica familiar, sua sexualidade é encarada como fonte de impureza, tentação e pecado aos olhos do pai e da mãe. A adolescente acaba sendo responsabilizada e demonizada por provocar desejo nos homens da família. Como uma representação do Julgamento das Bruxas de Salém, período em que mulheres foram acusadas de bruxaria, sendo oprimidas, agredidas e executadas.
A feminilidade de Thomasin perturbava sexualmente o irmão Caleb, e era principalmente ameaçadora à mãe. Katherine não aceita que a filha está se tornando uma mulher, atacando e recriminando-a. Em uma relação familiar desorganizada, os desejos inconscientes e edípicos comuns ao desenvolvimento psicossexual, como postulados por Freud, não encontravam saída para uma resolução saudável, mas guiaram a um enredo em que uma só mulher sairia vencedora ao desfrute da vida e do prazer.
Há uma luz na escuridão que surgirá das sombras.
Robert Eggers
Freud dizia que o que é reprimido, tende a retornar sempre. Gradativamente, os laços familiares vão se desfazendo, a família puritana se torna o centro do seu próprio horror e cada um se projeta no outro como um “bode expiatório” dos maus pensamentos, para achar um culpado, um traidor. A crescente histeria religiosa, mentiras e hipocrisias aos poucos se agravam. É interessante observar como a moralidade severa torna cada membro da família duro consigo mesmo, tornando a vida uma série de gestos e penitências que buscam pedir o perdão de Deus.
Análise Simbólica
O diretor Robert Eggers fez no filme uma verdadeira psicanálise dos contos de fadas. A figura mítica da bruxa surge como um recurso desesperado para manter a família coesa quando estão à beira da autodestruição. O filme é rico em representações simbólicas, além da construção cultural da imagem da bruxa, existem três animais que aparecem nas cenas como familiares das feiticeiras, são eles: o corvo, a lebre e o bode.
Sexualidade: A BRUXA E A MAÇÃ
As bruxas na Idade Média foram expulsas do paraíso pelo cristianismo arcaico por desviarem do comportamento obediente esperado pelas mulheres naquela época predeterminado pelo patriarcado. As bruxas eram aquelas que tinham o conhecimento de plantas medicinais, ocupavam a posição social de curandeiras e desfrutavam da sexualidade. Hoje, mesmo em tempos de pós-modernidade, a vivência da sexualidade ainda apresenta ranços do puritanismo em nível social, causando angústia ao desenvolvimento psicossexual.
O personagem Caleb quando volta do seu encontro com a bruxa, que simboliza um desabrochar da sexualidade, ele expele uma maçã, símbolo bíblico do pecado cometido por Adão e Eva, ou seja, símbolo do sexo, em outros momentos a maçã é citada como a crença de que nós nascemos do pecado.
A sexualidade humana era fortemente reprimida por obter relação direta com o pecado cometido através de Eva, talvez vista como a primeira bruxa na história da humanidade. Era necessário o controle dos impulsos sexuais libidinosos, caso contrário, a humanidade teria responsabilidade pela degradação da vontade de Deus, sendo impiedosamente castigada. No contexto do cristianismo primitivo, a sexualidade era relacionada ao mal, perverso e pecado. Assim como as bruxas sempre foram “bodes expiatórios” dos horrores, das sujeiras que habitam em nossas mentes.
CORVO, LEBRE E O BODE Black Phillip
Popularmente, o corvo e o seu crocitar é interpretado como o sinal místico de mau presságio. Em algumas mitologias, é dito que as bruxas utilizam das capacidades de premonição dos corvos para prever o futuro e se comunicarem com as forças espirituais do além, já que o corvo representaria a ligação entre o mundo dos vivos e dos mortos. Na Idade Média, acreditava que as bruxas teriam a capacidade mágica de se transformar nessas aves para tomar os céus.
O mesmo vale para as lebres. Em países nórdicos e nas ilhas britânicas, acreditava-se que as bruxas assumiam a forma de lebres para realizar travessuras e enganar caçadores e camponeses. A presença desses animais no filme sugere que não há somente uma bruxa e que elas estão servindo ao seu mestre, disfarçado de Black Phillip. Mas afinal, quem é Black Phillip?
O bode sempre foi visto como uma criatura estranha e ardilosa. Quando o cristianismo dominou a Europa, religiões pagãs foram varridas do mapa e suas divindades foram demonizadas pela Igreja Católica, de forma que figura do Baphomet (semelhante ao bode) passou a ser uma das várias representações do Diabo.
O bode preto batizado pelos gêmeos como Black Phillip apresenta uma aura sombria. Num ambiente de repressão para a jovem Thomasin, Black Phillip se revela como sendo o Diabo, uma figura que se assemelha mais à libertação do que tirania. Ele oferece a ela todas as maravilhas do mundo, o gosto da manteiga e das laranjas e tudo que ela ousou sonhar. Seduzida com as promessas, Thomasin assina seu nome no livro do Diabo e se torna uma bruxa, flutuando junto com um coven em meio a um sabbath.
Conclusão
Quem realmente é o mal? O diretor Robert Eggers deixa durante a narrativa a dúvida no espectador sobre a existência real de bruxas no interior da floresta, ou se a própria floresta sombria não passa de uma projeção da crescente paranoia e preocupações religiosas daquela família. A ideia do filme A Bruxa não é provocar sustos, mas explorar a escuridão e fragilidade da condição humana e a combinação perigosa do fundamentalismo religioso, a crendice e a culpa despertada por dogmas religiosos e pela ignorância.
O diretor Robert Eggers conta que a inspiração no processo criativo foi seu fascínio pelo filme O Iluminado de Stanley Kubrick e pelos filmes de horror inglês da Hammer (produtora dos anos 60) inspirados em contos do folclore. O processo de autodestruição de uma família como em O Iluminado e as personagens das bruxas do folclore, cuja melhor representação visual está nas pinturas místicas do espanhol Francisco de Goya, em especial O Sabá das Bruxas (1798), foram os principais elementos para a criação do filme A Bruxa.
Um filme sobre fanatismo religioso, uma família disfuncional e o desabrochar da sexualidade. O horror em A Bruxa é histórico, cultural e psicológico. Fruto de uma pesquisa histórica extensa, utilizando simbolismos e alegorias para expor os conflitos internos e externos dos personagens. A grande maioria dos espectadores está acostumada com o estilo de terror hollywoodiano, acredito que por isso, muitos estranharam e não gostaram desse terror transgressor, sendo incompreendido. A ousadia característica do mercado independente de filmes é o que mais me atrai e merece maior reconhecimento.
Trailer do Filme: A BRUXA
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Esse é um filme que estava querendo ver quando saiu o trailer (pelo trailer erroneamente me lembrou o filme A Vila de Shyamalan), mas depois de lançado acabei desistindo.
Apesar de muitos falarem bem do filme, e eu gostar de filmes de terror psicológicos, esse não me interessou muito na época que lançou.
Mas não posso negar, mesmo não tendo assistido, que ele aparenta ser um bom filme de terror psicológico, e pela sua matéria, mostra que a história é muito boa e complexa.
Gostei quando disse, “A ideia do filme A Bruxa não é provocar sustos, mas explorar a escuridão e fragilidade da condição humana”.
Se muitos diretores pensassem assim quando fossem dirigir um filme de terror não teríamos tantos filmes vazios que só querem assustar.
Assista Whispering Corridors 4 – Voice, é um filme de terror psicológico bem poético, quase que um drama.
E veja também Reencarnação da Vingança 2007, é um filme com uma história psicológica muito boa.
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Obrigada pelo comentário e sugestões de filme!
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