Análise e Crítica do Filme: O Espírito da Colmeia (1972) - Melkberg - psicologia, arte & cultura - Ana - filme - Frankenstein - realidade - Isabel - fantasia - abelhas - cogumelos - assistir - o espírito da colmeia - Víctor Erice

Análise e Crítica do Filme: O Espírito da Colmeia (1972)

Você já se imaginou cultivando abelhas como um apicultor? Esses delicados insetos estão ameaçados de extinção. Muitos ignoram a importância da polinização, alguns nem sabem do que se trata, mas, basicamente, para você comer é preciso do trabalho das abelhas. Colmeias representam a nossa vida em constante movimento. Escrevi um artigo sobre isso, confira aqui se tiver interesse! Agora, vamos conversar sobre o meus mais novo filme queridinho, O Espírito da Colmeia.

Tive a adorável surpresa de conhecer mais um trabalho maravilhoso com a presença do carisma e olhar encantador da “mini” Ana Torrent (a mesma que protagonizou Cria Cuervos, de Carlos Saura). Sempre meiga e com uma aura misteriosa. Quem ainda não conhece a atriz, esta é uma ótima oportunidade. Se você quer assistir ao filme O Espírito da Colmeia, atualmente se encontra disponível no streaming Filmicca. Fica a dica ;)

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Realidade vs Fantasia 

O Espírito da Colmeia, do cineasta Víctor Erice, é um retrato lúdico da Espanha pós-guerra civil e a implantação do regime franquista. Nos letreiros iniciais, desenhos coloridos infantis deixam claro que a trama será guiada por crianças. As narradoras principais são as irmãs Isabel e Ana, de oito e seis anos, que vivem num casarão isolado em algum lugar da planície de Castela, nos anos 40.

Podemos prever a solidão do local, no entanto um cinema móvel garante aos moradores do bucólico vilarejo um momento de diversão e entretenimento. Quando o caminhão chega carregado de obras da sétima arte, uma multidão se aglomera para descobrir ansiosamente qual filme será exibido. A história se desenrola após as crianças assistirem ao clássico Frankenstein (1931).

O medo e a curiosidade invadem a pequena Ana, enquanto observa a cena em que Frankenstein brinca com uma menina à beira do lago e é morto em seguida. Assustada ao saber que tanto a criança como o monstro morrem, Ana passa a sentir uma inquietação para desvendar o desconhecido, os mistérios da vida física e espiritual.

A menina melancólica não consegue distinguir realidade e ficção. Perguntas sobre o que é a morte, o que é a vida, surgem nos pensamentos de Ana, ela então passa a fazer perguntas para a irmã mais velha Isabel (Isabel Telleria), que afirma que tudo nos filmes são truques, menos Frankenstein, ele existe.

Acreditando nisso, Ana aguarda pela chegada do Frankenstein em sua tediosa realidade ao caminhar pelo bosque, colher cogumelos, andar sobre o trilho do trem e até ao olhar para dentro do poço. Isabel incentiva a procura pelo monstro, revelando um comportamento sádico em brincar com a inocência da irmã, além de desejar sentir a morte ao maltratar seu gato, observar o trem muito de perto e se fingir de morta. O clássico filme de terror provoca diferentes reações nas duas meninas, que discutem sobre a estória antes de dormir.

Se preparem para desvendar os mistérios, O Espírito da Colmeia é um filme para ser contemplado, com detalhes implícitos, que ficam nas entrelinhas e a intenção parece ser essa, utilizar metáforas para questionar a interpretação da realidade. Considero que Ana usou a fantasia quando vinculou a imagem de Frankenstein à sua experiência com um sujeito foragido, que muitos temem e desejam “eliminá-lo”, entretanto a inocência dela não permite tal sentimento de aversão.

Além disso, a menina parece se sentir deslocada em seu ambiente familiar, o que aumenta o seu apego à fantasia, algo esperado na infância. As irmãs Ana e Isabel têm pouco contato tanto com a figura materna como a paterna. O pai Fernando (Fernando Fernán Gómez) é um apicultor que se concentra a maior parte do tempo no trato com as abelhas ou no seu escritório, lendo e escrevendo. E a mãe, Teresa (Teresa Gimpera), vive depressiva e absorvida pela nostalgia do passado, enviando cartas para um antigo amor de quem se separou devido à guerra civil.

Um dos fatores que facilmente me envolve durante o ato de assistir a um filme é a ambientação, que neste caso nada falhou. A paisagem e o cenário repletos de tons terrosos e quentes em contraste ao ambiente nada acolhedor, foi um equilíbrio sutil, uma boa ideia. A aparência do casarão da família é marcado por janelas hexagonais que lembram os favos de mel, iluminadas pela cor amarelo, remetendo ao cotidiano dentro de uma colmeia. Detalhe importante que, as abelhas trabalham incessantemente para uma rainha, o que se assemelha à ditadura vivida naquele período.

O casarão é grande e belo, entretanto é ocupado pelo vazio, tudo naquele espaço provoca a sensação de solidão. Os pais de Ana e Isabel são indiferentes e silenciosos. Mesmo nas cenas das refeições em que todos da família estão à mesa, cada um é focado individualmente para reforçar a distância emocional entre eles.

Não ocorre grandes acontecimentos no enredo do filme O Espírito da Colmeia, o ritmo é lento com poucos diálogos. O ponto forte da obra é sua base poética, seu simbolismo e a fotografia esplêndida de Luis Cuadrado, que infelizmente durante as gravações começou a apresentar perda da visão. Ele persistiu em sua carreira por mais quatro anos, até que a cegueira total e um tumor no cérebro o impediram de prosseguir. Em sofrimento e deprimido, deu fim a sua vida em 1980 aos 46 anos de idade.

Embora, O Espírito da Colmeia não seja um filme político de forma explícita, o diretor Víctor Erice trouxe referências às condições em que se encontrava a Espanha depois da Guerra Civil (a luta dos republicanos contra nacionalistas) que ocorreu entre 1936 e 1939, e a consolidação do governo do ditador Francisco Franco, perpetuada por mais de quatro décadas.

Abandonadas à própria sorte, as duas meninas ora se divertem ora estão cercadas por perigos. A personalidade sádica de Isabel assusta Ana, que não consegue esquecer o icônico Frankenstein. Convicta que ele está numa construção abandonada ao lado do poço, ela vai procurá-lo em vários momentos. Certo dia, a pequena encontra no local um ativista anti franquista (ela não faz ideia do conflito político que destruía sua nação). A realidade e a fantasia se fundem, revelando a ditadura espanhola pelo olhar infantil, misturando um marco histórico ao mundo sobrenatural.

E a partir do desfecho da breve situação que a Ana passa com o inimigo político foragido (interpretado por Juan Margallo), se estabelece uma relação de dependência, o que proporcionará à criança o prazer de ser útil ao alimentá-lo e mantê-lo em segredo.

Explicação do Final

Ana deu ao revolucionário, as vestimentas, acessórios e o mel que pertenciam ao pai. Quando a protagonista da estória fugiu de casa, eu entendi que após ela comer um cogumelo acabou alucinando, o que a levou finalmente a conhecer Frankenstein. E curiosamente, a imagem da criatura emblemática refletida na água do lago, se assemelhou aos traços do rosto do seu pai. Ana tinha conhecimento sobre cogumelos e sabia que podia se envenenar, mas preferiu arriscar. Resumindo, a menina carente se apegou ao desconhecido para preencher a ausência dos pais.

Poucos são os momentos que vemos Ana conversar com a mãe ou com o pai. Quando ela foge e vê a “morte” de perto, imediatamente sua mãe se desapega do romance passado, dando a impressão que a família passará a ser mais unida e que as irmãs terão mais afeto e atenção.

Depois da morte do revolucionário, o corpo é colocado na mesma sala em que são exibidos os filmes que Ana tanto admira e espera para assistir. No entanto, pela primeira vez ela tem uma experiência mórbida ao visualizar o cadáver do seu “amigo” coberto, de pés expostos, visto sob a tela branca. Nesse instante, houve uma ruptura da realidade, um contato impactante com a noção contrastante de vida e morte prematuramente, o que está relacionado à metáfora dos cogumelos venenosos e comestíveis, os quais ela colhia.

Essencialmente, O Espírito da Colmeia expressa ideias indiretamente, através das sensações que provoca em suas cenas. Não é necessário interpretar a obra de modo objetivo, pois o cotidiano da estória está muito mais próximo da turva percepção infantil, em que não há uma separação nítida entre fantasia e realidade. A obra cinematográfica de Víctor Erice é poética, precisa ser não apenas vista, mas, sobretudo sentida. 

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