Filme: As Montanhas Se Separam, de Jia Zhangke - Melkberg - psicologia, arte & cultura - Zhang - Tao - filme - Dollar - as montanhas se separam - China - Liangzi - capitalismo - Jia Zhangke

Filme: As Montanhas Se Separam, de Jia Zhangke

É uma noite de Ano-Novo iluminada pelos fogos de artifício, a virada de 98 para 99, na cidade de Fenyang, China. O som da música “Go West” da banda Pet Shop Boys ecoa pelas ruas, enquanto um grupo de pessoas dança alegremente. Nesse cenário, a vendedora Shen Tao se prepara para cantar no palco da praça. Ela e seu amigo Liangzi, funcionário da mina de carvão local, são inseparáveis. Porém, com a chegada de Zhang, um velho amigo de infância que voltou para a cidade rico e dono de um posto de gasolina, tudo muda. Com a carteira cheia, ele compra a mina onde Liangzi trabalha, expulsa-o e conquista Tao, mas o futuro promete amarga decepções.

Dividido em três fases – 1999, 2014 e 2025 – “As Montanhas se Separam” é um drama profundo, dirigido e escrito por Jia Zhangke. A narrativa é um mosaico de cores, tons e texturas que evocam diferentes épocas, nos fazendo pensar sobre como os sentimentos se desdobram ao longo dos anos. Um triângulo amoroso se forma e se desfaz, amizades e desavenças se entrelaçam com casamento, divórcio, saúde e doença em meio às evoluções que a China enfrentou.

Tao, interpretada pela talentosa Zhao Tao, se mantém serena mesmo desconfortável com as incertezas de suas decisões. Ela é o centro emocional do filme, buscando um equilíbrio entre o que deseja e o que pode ter. Liangzi (Liang Jin Dong) é um trabalhador humilde, sem perspectivas de ascensão social e simboliza a tradição, em oposição Zhang (Zhang Yi) é consumido pela ambição por dinheiro e poder, representando o mundo moderno e capitalista, ele se torna um arrogante membro da nova classe alta chinesa.

Está gostando da análise de As Montanhas se Separam?

Aproveite para deixar seu comentário sobre o filme. E se quiser apoiar meu trabalho no Melkberg para que eu continue produzindo conteúdos como este, contribua com um PIX:

 

Um Conflito que Reflete a China de Hoje

A disputa dos dois homens completamente divergentes pelo amor de Tao é uma metáfora para referir-se à China dividida entre seus valores tradicionais e o capitalismo desenfreado. A escolha de Tao reserva consequências impactantes para o futuro, especialmente para seu filho Dollar – nome apelativo, não? – que cresce na Austrália e se esquece de falar mandarim.

Uma Narrativa em Três Partes: Esperança, Perda e Transformação

A primeira parte marca a união de um país que renasce através dos sonhos de uma juventude. A segunda mostra os desfechos, as separações, o velho homem que morre e é amparado – espiritualmente – pelos monges naquela estação de trem, a mesma em que Tao e seu filho Dollar com quem pouco conviveu se reencontram. O casal protagonista se divorcia, e Liangzi luta contra a doença e a pobreza. Será que é possível apagar a memória de um antigo amor ou as marcas de uma nação?

Mais adiante, acompanhamos Dollar (Zijian Dong). Crescido e criado na cultura ocidental, sem contato com sua mãe e suas origens, estabelece a total ruptura com o país nativo. Dollar somente fala inglês, vive na Austrália junto como seu pai, que não consegue criar vínculos afetivos no país que escolheu viver e nem se entende com o filho, já que ambos se comunicam apenas pelo Google Tradutor. Essa terceira parte, transmite uma melancolia, percebe-se que Dollar deseja redescobrir sua real identidade em um mundo globalizado, e um novo amor o deixa confuso trazendo à tona a antiga imagem de sua mãe.

A Memória Transcende Fronteiras

A passagem do tempo deixou marcas numa lembrança que remete ao velhos tempos onde amigos dançaram ao som de “Go West” e termina com Tao sozinha dançando sob a neve, livre para construir um futuro imprevisível com as cinzas do passado, encapsulando duas décadas de esperança e desilusão, com personagens cada vez mais conscientes do que os aproxima.

O título “As Montanhas se Separam” representa a jornada emocional de personagens distantes entre si e do país que nasceram, também revela que, apesar dos saltos no tempo e do afastamento de pessoas tão próximas, algumas coisas permanecem imutáveis, como as montanhas que resistem ao tempo sendo um símbolo de resiliência e força.

A pior coisa do amor é o bem-querer. Acho que temos que sofrer para saber que estamos amando (…) O tempo não muda tudo.

O filme expõe como as pessoas lidam com as mudanças em um país em crescimento vertiginoso e apresenta um destino marcado por escolhas feitas num contexto de transformação social e econômica. As decisões de Tao e Zhang foram impulsionadas pela ‘busca de uma vida melhor’, na condição materialista, que impõe os sacrifícios exigidos pelo capitalismo, resultando em um marido consumido por vícios e um filho afastado de suas raízes culturais.

O Tempo e a Tradição

“As Montanhas se Separam” destaca como a velocidade da vida moderna provoca a não valorização do tempo compartilhado. Planos longos, silenciosos e diálogos significativos, denunciam a necessidade de apreciar o momento presente. Isso fica evidente numa determinada cena, em que Tao escolhe um trem tradicional que demora mais tempo de viajem para ficar ao lado do filho e apreciar a paisagem.

A intenção do filme de Jia Zhangke é explorar como a passagem do tempo afeta as relações humanas, levando ao afastamento entre pessoas que outrora pareciam tão próximas e também questiona o que significa manter as raízes em um mundo cada vez mais globalizado.

Atolado em dívidas, Zhang passa seus dias com outros ricos decadentes, sempre cercado de whisky, jogos de azar, drogas e armas (aliás, parece amar mais a sua coleção de armas do que o próprio filho). Vítima de seus desejos megalomaníacos, que se transformaram em ilusões que o capitalismo vendeu-lhe, podemos dizer que Zhang sofre do vazio crônico de quem conquistou tudo o que um dia sonhou, entretanto agora é cegado pela angústia de não ter mais nenhum objetivo de vida e sequer lembra do amor. Não é possível sentir pena e nem raiva, diante da falta de empatia do personagem, não conseguimos sentir nada por ele, é como se Zhang já estivesse morto.

Dollar abandona a trajetória ditada pelo pai para reencontrar suas origens. Sua jornada, permeada por reflexões sobre pertencimento, leva-o a reaprender a própria língua com a ajuda da professora de mandarim, interpretada por Sylvia Chang, cuja idade se aproxima da que sua mãe teria hoje. O jovem assim redescobre edipicamente o significado da ternura maternal. Nessa relação amorosa, Dollar procura substituir a dor da ausência da figura da mãe, a qual passou anos reprimindo. Deixando o vestígio de um Complexo de Édipo mal resolvido, Dollar enxergou a nova parceira como extensão de sua mãe, não como uma mulher, na tentativa inconsciente de reviver e “corrigir” o passado.

Ainda guardando a chave de casa deixada por sua mãe, Dollar resolve retornar à China. Embora o desfecho permaneça incerto, a dança solitária de Tao, agora demonstra as cicatrizes da vida e sussurra a possibilidade de um recomeço. “As Montanhas Se Separam” é um filme repleto de cenas com uma enorme força sensorial, trazendo incessantemente o peso do passado, as angústias do presente e as incertezas em relação ao futuro.

As cores e texturas dos ambientes (sinais de uma época) no filme evoluem de tons vibrantes para uma estética mais clean, se desvanecendo, retratando a nostalgia de um tempo perdido ou até mesmo esquecido por alguns. A janela de exibição do filme também se transforma: na primeira transição da história, o enquadramento se alarga visivelmente, acompanhando a passagem temporal da trama e sugerindo um novo horizonte narrativo. 

Para finalizar, adorei a trilha sonora, fotografia e roteiro de “As Montanhas se Separam”. Para mim, algumas das lições valiosas transmitidas pelo filme de Jia Zhangke, foram:

  • O mundo dá voltas e a ganância os levou ao abismo.

  • Um imigrante sempre será imigrante, portanto honre suas raízes, seus antepassados, sua história.

  • Mantenha-se humilde não importa quantos dígitos possui a sua conta bancária.

  • A arrogância é asquerosa, acaba com qualquer relacionamento. Embora morassem juntos, o pai era distante do filho, já a mãe de Dollar conseguiu construir um vínculo forte, mesmo separados.

Distribuidora: Imovision

Trailer do Filme

Deixe um comentário